O conto “Nos olhos do
intruso”, de Rubens Figueiredo, a narrativa surreal apresentada em primeira
pessoa, baseia-se numa experiência vivenciada pela personagem, o narrador
autodiegético. No conto, a personagem encontra no teatro uma pessoa igual a si,
um pouco mais nova. Aos poucos, passa a assumir a identidade do outro numa
espécie de amálgama. Ao ser confundido, o narrador toma para si a vida e a
memória do outro.
Aos poucos, as
atividades que esses desconhecidos atribuíam a mim começaram e me parecer familiares.
As pessoas que eles mencionavam chegaram a se tornar íntimas para mim, com seus
nomes e suas ambições cotidianas. Tudo ia se incorporando à minha memória. O
meu passado se expandia com um novo elenco de pessoas e fatos, ao mesmo tempo
em que o meu presente também se ampliava, numa espécie de movimento de
conquista. Minha vida abarcava muitas outras vidas e assim eu conseguia me
sentir mais vivo do que nunca.
(p.541-542)
Quando o outro morre, se
sente ignorado e viaja para a cidade do futuro. Lá, encontra um sósia, um pouco
mais velho.
Medeiros (2007) diz que a construção dessa narrativa nos
encaminha ao território do duplo, pois ela se dá de modo que o sujeito não é
concebido como uma unidade. Para o autor, “ao abrir mão de uma identidade
nuclear, passa a viver o outro, a ser, ao mesmo tempo, vários e nenhum”
(MEDEIROS, 2007:28)
Esse amálgama provoca no leitor a ideia de uma realidade
falseada. O narrador encontra seu sósia no teatro, terreno fértil para a ilusão,
os sentidos e as metamorfoses.
No final da peça,
algumas fileiras à minha frente, aconteceu. Quando as pessoas se levantaram,
entrevi, no intervalo das cabeças, um homem parecido com alguém que eu
conhecia. Talvez fosse a dança de tantos rostos a meu redor, mas o efeito era o
de muitas feições distintas convergindo e se sobrepondo no ar transparente.
[...] Uma desconfiança incômoda me obrigou a olhar melhor e então deparei com
um sujeito igual a mim mesmo, apenas um pouco mais novo. Sacudido por uma
espécie de insulto, experimentei o temor de estar sendo sorrateiramente
substituído.
(p.540)
Para Velásquez (2011, 29), o duplo traz no
sujeito um problema em relação “à originalidade, a unicidade e existência”, e
faz com que o sujeito passe a hesitar sobre si, fazendo com que o leitor tenha
a mesma hesitação.
No conto, a preocupação
não é o espaço ou a linearidade do tempo e sim o que nele se encontra. O autor
usa uma linguagem correta, elegante, evita as frases longas. O conto é
construído no discurso indireto, não se apropria de figuras de linguagem e
consegue expressar seus sentimentos numa linguagem mais denotativa e ao mesmo tempo
rica em impressões transmitidas da personagem para o leitor, em que o ritmo da
narrativa se constrói à medida que as ações se desencadeiam.
A temática principal
está na verossimilhança, no encontro do real com o fantástico, em que os
ambientes (o teatro, a barbearia) conduzem a personagem ao sobrenatural. Na
barbearia, a duplicidade se revela através dos espelhos, que provoca uma crise
de identidade, um dilema entre a cópia e o original.
Velásquez (2011, 25)
chama a atenção para a literatura fantástica presente no conto de Rubens
Figueiredo, pois “contribui com a transgressão dos limites da natureza –
limites entre a matéria e o espírito -, que são evocados na literatura
fantástica”. Para a autora, tanto o narrador/e ou personagem e o leitor, diante
desse elemento literário, hesitam entre o universo fantástico e o limite
imposto pela realidade. Isto porque a linguagem construída, que tece o ambiente
e as ações que nele acontecem, possibilita ao fantástico e sobrenatural uma
visão ambígua, em que “o personagem hesita e o leitor ao se identificar com
este também hesita (p. 27)”.
Dentro desse estilo, segundo
Velásquez, o ambiente da narrativa, que aparenta ser real, contribui para gerar
o incômodo e a desconfiança no leitor, fato que o leva ao encontro com o duplo,
ponto principal de sua inquietação.
Podemos perceber que a
linguagem da narrativa fantástica constrói uma atmosfera em que a coerência do
discurso é rompida, articulando a aparente veracidade dos fatos e criando uma
paródia com a lógica racional. Segundo Martinho (2010, 5),
Na linguagem fantástica, persiste um
interessante processo de produção de sentidos, embora diferente do jogo
literário. No discurso fantástico, a ultrapassagem semântica e estética é,
evidentemente, muito mais radical: pretende-se sobrepor o inverossímil sobre a
ordem racional, causar inquietações, vacilações e dúvidas para demonstrar que o
mundo coerente em que vivemos talvez não seja tão coerente assim.
Deste modo, o fantástico possibilita uma transformação
nos mais variados contextos e questiona os seus limites, sejam eles no plano
histórico, social, econômico, político, sexual ou ideológico. Por isso, a
autora afirma que a narrativa fantástica é bastante proteiforme, pois mostra a
função verdadeira dos valores cultuados pelos sistemas ideológico e faz com que
a linguagem corrosiva presente proponha uma fuga do mundo de falsos valores,
funcionando como uma máscara que transfigura o real.
BIBLIOGRAFIA
MARTINHO, Cristina Maria
Teixeira. A linguagem fantástica: uma
experiência de limites. Cadernos do CNLF, vol XIV, No 4. USS,
2010
MEDEIROS, Marco Aurélio
Pinheiro. O labirinto dos eus
cambiantes: a questão da identidade em “Eles eram muitos cavalos, de Luiz
Ruffato”. UERJ, 2007
MORICONI, Italo
(organizador). Os cem melhores contos
brasileiros do século. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, pag 540 - 543
VELÁSQUEZ, Alexandra
Britto da Silva. O duplo na literatura
fantástica – análise comparativa entre os contos de Allan Poe, Rubens
Figueiredo e Sérgio Sant’Anna segundo Tzevan Todorov em “Introdução à
Literatura Fantástica” e Clément Rosset em “O real e seu duplo”. II
Colóquio “Vertentes do Fantástico na Literatura”. UNESP, 2011
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