A CRÍTICA SOCIAL E A LINGUAGEM EM
VIDAS SECAS*
*Leonilto Manoel da Cruz, Licenciatura em Letras, UFRR
INTRODUÇÃO
O
presente trabalho vem abordar dois temas bastante presente no romance Vidas
Secas, de Graciliano Ramos: A crítica social e a linguagem. Publicado em 1938,
a obra narra a vida de uma família de retirantes, marcada por dificuldades
advindas da natureza e da opressão do homem, onde o contexto pode ser
relacionado com os dias atuais nas diversas óticas temáticas que compõem o
romance, como estes que fazem parte da análise.
Como crítica social, a análise nos
leva a perceber como o autor trabalha as personagens e busca explorar
paralelamente, a dimensão individual e social de cada uma, de modo que o
resultado acaba por problematizar as questões sociais em um tom crítico e
denunciativo. A fome, a falta de moradia, a opressão do patrão e do Governo são
elementos que atingem Fabiano e sua família que, desamparados no campo social e
discursivo, nos faz entender que o autor contempla, de certo modo, muitos
Fabianos existentes no Brasil cheio de contrastes e marcado pela desigualdade
social.
A falta de comunicação entre
Fabiano, a mulher e os dois filhos nos revela que secas não são somente a vida
das personagens, mas também as palavras. A linguagem, ideologicamente
compreendida como instrumento de libertação do homem e essencialmente social,
não faz parte do cotidiano retratado em Vidas Secas. A ausência do discurso se
reflete nas relações entre as personagens e suas ações, onde a comunicação se
situa no mesmo nível dos bichos, num processo de animalização. Na análise,
podemos perceber que a linguagem é utilizada como arma de opressão sobre
Fabiano e sua família, contribuindo para a condição do ser oprimido e
marginalizado.
A CRÍTICA SOCIAL EM VIDAS SECAS
Publicado
na década de 30, o contexto histórico do romance Vidas Secas traz uma ótica
pautada no subdesenvolvimento social e econômico brasileiro. A ficção
regionalista se aproxima da realidade e dá um tom de visão crítica do ponto de
vista social. Através do regionalismo e a seca do nordeste, a realidade
socioeconômica e as relações de poder, o romance nos faz perceber que fatores
como estes transformam o homem, adequando-o a sua realidade (seca, miséria,
exploração).
Para Hirato e Cícero (2009, p5), o
Modernismo Brasileiro, por estar vinculado ao desenvolvimento da economia
capitalista, teve grande efervescência na década de 20 e 30.
“Este,
por sua vez, trouxe consigo um momento
de intenso questionamento sobre a realidade social brasileira, tendo o
Movimento Modernista logrado combinar com elementos estéticos (ligados às
modificações operadas na linguagem) aos elementos ideológicos (diretamente
atada ao pensamento, à visão de mundo)”.
Sob
esta ótica, os autores observam que a realidade vivida por Fabiano, sua mulher,
seus filhos e a cachorra Baleia, não mostra apenas as dificuldades de uma
família diante da seca e a opressão geográfica. Expõe o desamparo social e um
Nordeste decadente, as injustiças sofridas pelas camadas menos favorecidas e
oprimida pela miséria e o descaso político. Segundo Rosa (2002, apud Victor Coelho, 2008), além do
desamparo social (acesso a moradia, saúde, educação, segurança) está o
desamparo discursivo (formação de valores e ideais), fato que dificulta o
sujeito de posicionar-se e ter voz nas relações de poder e contribui mais ainda
para o processo de exclusão social. Para a autora, isto “perpetua e submete os
sujeitos ao discurso social dominante, promovendo sua adesão aos fundamentos da
organização social que lhes atribui lugares marginais”. Desse modo, Victor
Coelho (2008) observa que “a hierarquia social é reforçada pela manutenção da
violência simbólica”.
Nesse
contexto, a obra de Graciliano Ramos nos permite aproximar da visão política do
escritor. Em 1936, foi preso acusado por conta de seu envolvimento político. Entra
para o Partido Comunista Brasileiro em 1945 e visita União Soviética e outros
países socialista em 1952. Isto explica porque “Vidas Secas” possui uma
abordagem marxista em seu contexto político-social. O contato que o autor teve
com a filosofia marxista nos faz entender porque o autor expõe sua preocupação
com a realidade social no Brasil e se posiciona politicamente na produção
literária, exercendo um papel de denúncia e de crítica social, características
do Neorrealismo. Nesta época, O Brasil vivia a era Vargas, período de
transformações sociais e econômicas.
Segundo
Hess et al (2005, p.2),
a
região em que a crise da sociedade colonial do início do século XX se delineava
com mais propriedade era o Nordeste. As tendências modernizadoras e de
transformação do país encontravam nessa região obstáculos mais concretos; ali
se frustraram as esperanças de uma renovação democrática, como apontou Carlos
Nelson Coutinho: “na medida que aí as contradições eram mais ‘clássicas’ (no
sentido de Marx), o Nordeste era a região mais típica do Brasil, a sua crise
expressando – em toda sua crueza e evidência – a crise de todo o País”
Os
anos que se sucederam após a I Guerra Mundial provocou profundas mudanças no
cenário político entre os países. Com a crise de 1929 dos Estados Unidos,
entraram em decadência as oligarquias cafeeiras, fato que fortaleceu o poder do
Estado. As transformações econômicas e sociais foram notáveis na Era Vargas,
mas a centralização do poder na região sudeste criou dois contrates: o desenvolvimento
industrial e a desigualdade social, como a seca e a miséria. É nesse contexto
que Graciliano Ramos, alimentado pelos ideais marxistas, assume uma postura de
denunciador dos problemas sociais.
Segundo
Palermo e Carbonel (2008 p.6), a partir
do engajamento com as questões sociais, essa característica baseia-se
na
tensão de um “eu” (metonímia do povo, porém ainda assim individualizado) e o
mundo (sertão) que não se resolve, uma vez que o drama desse “existir” depende
necessariamente da solução de questões mais amplas: a luta de classes, a
opressão capitalista, a animalização do homem pelo próprio homem (expressão
sociológica da crueldade humana intrínseca).
Para
estes autores, “o foco, definitivamente é a problematização e a discussão da
questão social”. Sendo assim, a história de uma família brasileira diante de um
cenário de seca e miséria assume uma dimensão maior e passar a representar
todos os brasileiros que vivem em semelhante condição. É como afirmam Hirato
e Cícero (2009, p5): “Fabiano deixa de ser um personagem fictício e regional”.
Em Vidas Secas, a opressão não vinha
apenas das condições naturais. Fabiano é um nômade, ele não era dono de terras,
não tinha propriedade, mas sua andança não se deve apenas à seca.
“A
sua condição de miséria e opressão decorre da grande propriedade, bem como,
entre outros fatores, da política de irrigação favorável às classes dominantes.
É o capital enquanto relação social que gera e aprofunda a miséria”
(HIRATO
e CÍCERO, 2009, p7). Fabiano vivencia a opressão do homem através da relação de
poder, que se faz presente em vários capítulos da narrativa. No capítulo 10 – Contas,
vemos que a permanência na fazenda foi negociada mediante a exploração.
Fabiano recebia na partilha a quarta parte dos bezerros e a
terça dos cabritos. Mas como não tinha roça e apenas se limitava a semear na
vazante uns punhados de feijão e milho, comia da feira, desfazia-se dos
animais, não chegava a ferrar um bezerro ou assinar a orelha de um cabrito.
Se pudesse economizar durante alguns meses, levantaria a cabeça.
Forjara planos. Tolice, quem é do chão não se trepa. Consumidos os legumes,
roídas as espigas de milho, recorria a gaveta do amo, cedia por preço baixo o
produto das sortes. Resmungava, rezingava, numa aflição, tentando espichar os
recursos minguados, engasgava-se, engolia em seco. Transigindo com outro, não
seria roubado tão descaradamente. Mas receava ser expulso da fazenda. E
rendia-se. Aceitava o cobre e ouvia conselhos. Era bom pensar no futuro, criar juízo.
Ficava de boca aberta, vermelho, o pescoço inchando. De repente estourava:
- Conversa. Dinheiro anda
num cavalo e ninguém pode viver sem comer. Quem é do chão não se trepa.
Pouco a pouco o ferro do proprietário queimava os bichos de Fabiano.
E quando não tinha mais nada para vender, o sertanejo endividava-se. Ao chegar
a partilha, estava encalacrado, e na hora das contas davam-lhe uma ninharia.
Fabiano
era um sem terra e para manter-se na casa da fazenda, foi submetido à
exploração pelo latifundiário, a quem se refere como um homem “arreliado, exigente
e ladrão, espinhoso como um pé de mandacaru” (Capítulo 2 – Fabiano). Melo (2005,
p.382) observa que a humilhação e o abandono a que a família sofria,
animalizando-os, fortalecia-se por meio do Estado, representado pelo soldado
amarelo (cor que simbolizava o Estado). Para a autora, no capítulo “Cadeia”, “o
Governo e a lei punham-se em evidência somente para demonstrar o lugar
insignificante em que homens como Fabiano se encontravam”. Através do soldado,
vemos presente a opressão exercida pelo Estado, a quem o homem deve se
sujeitar. No Capítulo 11 – O soldado amarelo, Fabiano tem a chance de se vingar
daquele que o colocara na cadeia injustamente. Neste trecho, percebemos que
mesmo com o desejo de vingança, tomou consciência de que o soldado amarelo,
como ele, era um coitado que recebia ordens de um poder instituído e sendo
assim, de nada adiantaria matá-lo, a opressão não deixaria de existir.
Aprumou-se, fixou os olhos nos olhos do policia, que se
desviaram. Um homem. Besteira pensar que ia ficar murcho o resto da vida.
Estava acabado? Não estava. Mas para que suprimir aquele doente que bambeava e
só queria ir para baixo? Inutilizar-se por causa de uma fraqueza fardada que
vadiava na feira e insultava os pobres! Não se inutilizava, não valia a pena
inutilizar-se. Guardava a sua força.
Essa
consciência das relações de poder fica evidente quando Fabiano pensa “governo é
governo” e tira o chapéu de couro, curva-se e ensina o caminho ao soldado
amarelo. Isto não significa apenas humildade, vemos aqui um sinal de obediência
e submissão aos superiores por meio de costumes. No Capítulo 7 – O mundo coberto de penas, ao
lembrar-se do encontro, pensa que se tivesse matado o soldado, estaria preso,
mas seria um homem respeitado. “- Fabiano, meu filho, tem coragem. Tem
vergonha, Fabiano. Mata o soldado amarelo. Os soldados amarelos são uns desgraçados
que precisam morrer. Mata o soldado amarelo e os que mandam nele”.
Ao ensinar o caminho ao soldado
amarelo ao invés de matá-lo, Fabiano não estava evitando apenas sua prisão.
Estava também evitando a prisão de sua mulher e seus filhos, que ficariam vulneráveis,
sem a sua proteção, como mostra esse trecho do Capítulo 3 – Cadeia: “Pobre de
sinhá Vitória, inquieta sossegando os meninos. Baleia vigiando, perto da
trempe. Se não fossem eles... (...) o que o segurava era a família”. Segundo
Victor Coelho (2008), “parece que Graciliano Ramos quer um destino diferente
para a família de Retirantes. O conhecimento sociológico da época, assim como o
marxismo, já diziam que a eliminação de um indivíduo não implica as alterações
estruturais e nas relações sociais”.
Por ser preso injustamente, Fabiano
não se convencia de que o soldado amarelo representasse o governo: “Governo, coisa distante e perfeita, não
podia errar. O soldado amarelo estava ali perto, alem da grade, era fraco e
ruim, jogava na esteira com os matutos e provocava-os depois. O governo não
devia consentir tão grande safadeza” (Capítulo 3 – Cadeia). Nessa concepção,
Fabiano idealiza um governo justo, representado por pessoas honestas, não pelo
soldado amarelo, que se beneficia do poder para abusar dos menos favorecidos e
marginalizados.
Outro momento em que Fabiano entra
em contato com o governo acontece no capítulo 10 – Contas, quando surge o
fiscal da prefeitura para cobrar imposto da venda de um porco que matara. E aqui Venturotti (2008, p.4) traz uma
reflexão: “o que realmente significaria para o sertanejo, isolado no mundo e
sem os devidos recursos do Governo, os impostos obrigados a pagar?” Silva
(2001, p.17) observa que a pior adversidade de Fabiano vem do meio social.
O Soldado Amarelo
corrupto, oportunista e medroso, que subjuga os demais por compreender-se como
a força da lei; o dono da fazenda exigente, ladrão e opressor; o fiscal da
prefeitura intolerante e explorador só espelham os desmandos sociais dentro dos
quais se perdem Fabiano e sua família. Esses personagens, caracterizados como
ricos proprietários e opressores, não têm necessidade de fugir das secas. É
justamente esta a preocupação paralela de Graciliano Ramos, denunciar a
desigualdade entre os homens, a opressão social, a injustiça. Em momento algum
o esmagamento de Fabiano e sua família é explicando apenas pela seca ou
qualquer fator geográfico.
A
LINGUAGEM EM VIDAS SECAS
Diante de tamanha opressão, Fabiano
não se sentia dono de sua própria linguagem. Sendo a linguagem um dos fatores
fundamentais para que o homem se insira na sociedade, esta lhe era subtraída
diante da exploração vivida.
Durante a Era Vargas, o Integralismo
ganhou força no Brasil. As ideias integralistas eram bem recebidas pelas camadas
médias urbanas e intelectuais da época, passando a representar um dos mais
importantes movimentos no cenário político da década de 30. Sua filosofia se
caracterizava principalmente pelo nacionalismo e defesa da hierarquia social.
Segundo Arraes (2011, p.50), “Vargas estava atento ao fato de que a linguagem,
sob o viés da cultura, poderia ser uma estratégia de controlar e unificar os
brasileiros”. E isto Vargas fez bem. Controlava a cultura por meio da censura,
criou o ministério da Saúde, Educação e Trabalho e governou o país sendo
populista e centralizador. Em relação a educação, Arraes afirma que o Governo,
“ao mesmo tempo que reconhecia as necessidades populares, cedendo a algumas
pressões, desenvolvia uma política de massa que procurava manipular essas
necessidades, transformando a educação em uma forma de controle e difusão da
ideologia oficial (idem, p. 52).
No contexto internacional, Getúlio
Vargas queria passar a imagem de um país de riquezas naturais, em amplo
desenvolvimento socioeconômico, a que a autora chama de “exaltação ufanista”.
Como contraste estava a pobreza do sertão, não importadas pelas canções que
divulgavam um Brasil sem a realidade da
seca, da miséria e exploração.
É nesse contexto que Graciliano
Ramos, imbuído dos ideais marxistas, escreve o romance Vidas Secas, denunciando
o desamparo social num Brasil esquecido, vivido por muitos “Fabianos”
explorados pelo sistema agrário que fortalecia o latifúndio. Na obra, percebemos
como as relações de poder, a mais-valia e a desigualdade social por meio da
exploração se fazem presentes. O silêncio das personagens, a falta de diálogo,
o “exílio linguístico” como estudaremos mais adiante, nos revela o drama de uma
família desamparada, que se cala diante da natureza hostil e da hostilidade de
uma classe dominante.
O
romance nos faz entender que não é a terra que é seca, são as vidas. A maior
parte da narrativa acontece num período propício para a produção e fartura.
Bem. A catinga ressuscitaria, a semente do gado voltaria ao
curral, ele, Fabiano, seria o vaqueiro daquela fazenda morta. Chocalhos de
badalos de ossos animariam a solidão. Os meninos, gordos, vermelhos, brincariam
no chiqueiro das cabras, Sinhá Vitoria vestiria saias de ramagens vistosas. As
vacas povoariam o curral. E a catinga ficaria toda verde. (Capítulo 1 –
Mudança)
De fato, a seca só volta a partir do
penúltimo capítulo. Com a estação que favorecia a plantação, nascia também a
esperança de que a vida seria melhor. Mas ali, numa terra de donos, onde a
exploração e a opressão criavam raízes, Fabiano não tinha condições de se
legitimar como homem, impossível ainda seria legitimar seus sonhos.
De
acordo com Silva (2001, p.12) “secas não são só as vidas das personagens e as
paisagens que atravessam o sertão nordestino, mas também a linguagem do livro”.
No capítulo 2 – Fabiano, podemos perceber como a comunição era escassa,
mirrada, quase ausente.
Vivia longe dos homens, só se dava bem com animais. Os seus pés
duros quebravam espinhos e não sentiam a quentura da terra. Montado,
confundia-se com o cavalo, grudava-se a ele. E falava uma linguagem cantada,
monossilábica e gutural, que o companheiro entendia. A pé, não se aguentava
bem. Pendia para um lado, para o outro lado, cambaio, torto e feio. Às vezes
utilizava nas relações com as pessoas a mesma língua com que se dirigia aos
brutos - exclamações, onomatopeias. Na verdade falava pouco. Admirava as palavras
compridas e difíceis da gente da cidade, tentava reproduzir algumas, em vão,
mas sabia que elas eram inúteis e talvez perigosas.
Protez e Menon (2008, p.2)
referem-se ausência de linguagem como “a atrofia da palavra, fator que gera a
exclusão”. Essa “atrofia” não tem raiz na estrutura familiar e sim, em fatores
externos que atingem Fabiano e sua família de modo que as interações que
norteiam as relações afetivas e sociais são produtos dessas interferências. Em
alguns trechos, percebemos que Fabiano nem sempre se sente confortável em
relação à linguagem. No Capítulo 2, Fabiano vê em eu Tomás da Bolandeira um
modelo de comunicação e deseja adquirir uma linguagem mais instruída, ou seja,
sente necessidade de comunicação: “Em horas de maluqueira Fabiano desejava imitá-lo: dizia palavras
difíceis, truncando tudo, o convencia-se de que melhorava. Tolice. Via-se
perfeitamente que um sujeito como ele não tinha nascido para falar certo”.
De acordo com
Melo (2005, p.385), o desconhecimento da linguagem por parte de Fabiano
configurava o desconhecimento da sua realidade, pois “o domínio da linguagem
era o domínio do mundo, da realidade, a compreensão de seus mecanismos”. Isto
explica porque Fabiano considerava as palavras perigosas: “Admirava as palavras
compridas e difíceis da gente da cidade, tentava reproduzir algumas, em vão,
mas sabia que elas eram inúteis e talvez perigosas”. Melo (2005, p.385)
considera que “o ser bicho estava relacionado ao arcaísmo da linguagem de
Fabiano e sua Família”. Segundo a autora, somente a palavra lhe daria condições
de torná-lo homem, uma vez que a compreensão da realidade se dá mediante a
aquisição da linguagem.
Logo no
capítulo I – Mudança, percebemos a incomunicabilidade da família que, para
aliviar a fome, matara o papagaio mudo: “Não podia deixar de ser mudo.
Ordinariamente a família falava pouco. E depois daquele desastre viviam todos
calados, raramente soltavam palavras curtas. O louro aboiava, tangendo um gado
inexistente, e latia arremedando a cachorra”.
Essa “atrofia
da palavra” conforme diz Protez e Menon, é sentida pelos irmãos. A falta de
domínio da linguagem dificultava não somente os meninos, mas também Fabiano,
que muitas vezes não era compreendido por não saber se expressar. Dessa forma,
as frases soltas com repetições e sons guturais recebiam o auxílio de gestos e
assim alcançava mais êxito na comunicação. No Capítulo 7 – Inverno, podemos
perceber o quanto a linguagem no contexto familiar era deficiente.
Fabiano tornou a esfregar as mãos e iniciou uma historia
bastante confusa, mas como só estavam iluminadas as alpercatas dele, o gesto
passou despercebido. O menino mais velho abriu os ouvidos, atento. Se pudesse
ver o rosto do pai, compreenderia talvez uma parte da narração, mas assim no
escuro a dificuldade era grande. (...)
Fabiano gesticulava. Sinhá Vitoria agitava o abano para sustentar
as labaredas no angico molhado. Os meninos, sentindo frio numa banda e calor na
outra, não podiam dormir e escutavam as lorotas do pai. Começaram a discutir em
voz baixa uma passagem obscura da narrativa. Não conseguiram entender-se,
arengaram azedos, iam se atracando. Fabiano zangou-se com a impertinência deles
e quis puni-los. Depois moderou-se, repisou o trecho incompreensível utilizando
palavras diferentes.(...)
O menino mais velho estava descontente. Não podendo perceber as
feições do pai, cerrava os olhos para entendê-lo bem. Mas surgira uma duvida.
Fabiano modificara a historia - e isto reduzia-lhe a verossimilhança. Um
desencanto. Estirou-se e bocejou. Teria sido melhor a repetição das palavras.
Altercaria com o irmão procurando interpreta-las. Brigaria por causa das
palavras - e a sua convicção encorparia. Fabiano devia tê-las repetido. Não.
Aparecera uma variante, o herói tinha-se tornado humano e contraditório.
Vemos
na insatisfação do irmão mais velho a busca incessante pelo significado das
palavras. Outro exemplo de busca do
conhecimento através da linguagem está no capítulo 6 – O menino mais velho, que
ao ouvir a palavra inferno, busca a sua compreensão: “Entranhando a linguagem
de sinhá Terta, pediu informações”. Após algumas tentativas em vão com a mãe, o
menino também se frustra com o pai e por ter seu direito de saciar sua
curiosidade cerceado, desabafa-se com a cachorra Baleia: “Explicou isto à cachorrinha
com abundância de gritos e gestos” . No capítulo 8 – Festa, podemos notar que
os irmãos se sentem num ambiente de conflito, estranhos ao mundo da linguagem,
dos nomes e das coisas:
Agora olhavam as lojas, as toldas, a mesa do leilão. E conferenciavam
pasmados. Tinham percebido que havia muitas pessoas no mundo. Ocupavam-se em
descobrir uma enorme quantidade de objetos. Comunicaram baixinho um ao outro as
surpresas que os enchiam. Impossível imaginar tantas maravilhas juntas. O
menino mais novo teve uma duvida e apresentou-a timidamente ao irmão. Seria que
aquilo tinha sido feito por gente? O menino mais velho hesitou, espiou as
lojas, as toldas iluminadas, as mocas bem vestidas. Encolheu os ombros. Talvez
aquilo tivesse sido feito por gente. Nova dificuldade chegou-lhe ao espírito
soprou-a no ouvido do irmão. Provavelmente aquelas coisas tinham nomes. O
menino mais novo interrogou-o com os olhos. Sim, com certeza as preciosidades
que se exibiam nos altares da igreja e nas prateleiras das lojas tinham nomes.
Puseram-se a discutir a questão intrincada. Como podiam os homens guardar
tantas palavras? Era impossível, ninguém conservaria tão grande soma de
conhecimentos. Livres dos nomes, as coisas ficavam distantes, misteriosas. Não
tinham sido feitas por gente. E os indivíduos que mexiam nelas cometiam imprudência.
Vistas de longe, eram bonitas. Admirados e medrosos, falavam baixo para não
desencadear as forcas estranhas que elas porventura encerrassem.
Protez e Menon (2008, p.4) observam que a ausência de linguagem
entre as personagens evidencia a semelhança entre o homem e o animal,
comunicando-se “por gestos e ruídos e sem atingir um discurso coerente”. O
diálogo quase inexistente parece se justificar pela brutalidade da seca que
fazia Fabiano sentir-se um bicho. O silêncio das palavras, na verdade, expõe a
miséria da família que se encontra excluída e marginalizada. Sendo assim, a
falta de comunicação a mantinha estagnada, sem condições de avançar. Nesse
aspecto, Coelho (2008) considera “a questão da linguagem como uma barreira
social e, mais ainda, como demarcadora de uma hierarquia social”.
Diante
dessa marginalização que se constitui pela ausência de comunicação, Venturotti
(2008, p. 3) chama de “exílio linguístico”. Segundo o autor, a linguagem se
torna um mundo tão hostil quanto à seca da região. Isso explica a perturbação
dos meninos sem nome em algumas partes da narrativa. Descobrir o significado
das coisas tornavam-nas mais próximas: “Livres dos nomes, as coisas ficavam
distantes, misteriosas”( Capítulo 8 – Festa). Para Venturotti, o exílio
linguístico
está na própria realidade de não terem um nome. Tão
desumanizados e destituídos de si mesmos. Permanecem no anonimato, denunciando
um descaso com aqueles que vivem no sertão. Não tendo nomes, não possuem
identidade e, consequentemente, não adquirem direitos. A mudez a que a família
é submetida funciona como um elemento de não-humanidade, por isso ela almeja a
linguagem como um fato libertador de sua condição semi-animalesca.
Quando
estava na cadeia, Fabiano lamenta por não saber falar direito. Se soubesse, teria
se defendido da mal que sofrera. Silva (2001, p.22) considera que, nesse caso,
“o bom desempenho linguístico seria uma arma, uma defesa contra injustiças,
exclusão, discriminação”. Por não ter instrução, Fabiano recuara, inseguro de
seus argumentos diante dos argumentos do soldado amarelo:
“Nunca vira uma escola. Por isso não
conseguia defender-se, botar as coisas nos seus lugares. (...) Se lhe tivessem
dado ensino, encontraria meio de entendê-la. Impossível, só sabia lidar com
bichos (Capítulo 3 – Cadeia).
Outro aspecto importante a ser considerado nessa
obra é a fragmentação do romance. A fragmentação não rompe apenas com a
linearidade do tempo, ela está presente na linguagem quase inexistente e na
compreensão da realidade, na seca que obriga a família a fugir e na opressão
social.
“O
romance,constituído de treze capítulos, não obstante apresenta-se fragmentário,
como quadros de episódios da família, liga-se de modo contínuo, pois o primeiro
e o último capítulo tratam do mesmo tema: a fuga da seca.Este caráter revela
uma intencionalidade cíclica para a família de Fabiano, pois o mundo fecha-se
para eles. (VENTUROTTI, 2008, p.3)
A volta da seca no último capítulo parece fechar o
mundo para Fabiano, vida cíclica que reforça a perpetuação da miséria, dentro
de uma concepção naturalista, em que o sujeito é influenciado pelo meio e pelo
contexto histórico. Então, Fabiano segue o mesmo destino que teve seu pai, e
que terá seus filhos.
A sina dele era correr mundo, andar para cima e para baixo, a
toa, como judeu errante. Um vagabundo empurrado pela seca. (Capítulo 2 –
Fabiano)
Bem. Nascera com esse destino, ninguém tinha culpa de ele haver
nascido com um destino ruim. Que fazer? Podia mudar a sorte? Se lhe dissessem
que era possível melhorar de situação, espantar-se-ia. Tinha vindo ao mundo
para amansar brabo, curar feridas com rezas, consertar cercas de inverno a
verão. Era sina. O pai vivera assim, o avô também. E para trás não existia
família. Cortar mandacaru, ensebar látegos - aquilo estava no sangue. (Capítulo
10 – Contas)
Fabiano
vivia num mundo incompreensível, do mundo para si e dele para o mundo. A
violência simbólica imposta pelo desamparo discursivo o levava a acreditar que
sua pobreza e vida sofrida também tinha um processo natural, a quem não
competia entender.
Se
a linguagem é fator determinante para a compreensão do mundo, o “apartheid
linguístico” segrega o ser humano, alimenta a desigualdade e o põe à margem da
ignorância. Fabiano e sinhá Vitória fazia isso com seus filhos. Quando o filho
mais velho queria saber o que era inferno, percebemos que o menino buscava um
mundo desconhecido que viesse a ser revelado através das coisas, dos nomes.
Reprimi-los e cerceá-los não apenas os impediam de compreender as coisas e passar
a enxergá-las à luz das revelações, era mais que isso. Essa influencia do meio tornariam
os filhos como os pais, sem a força da palavra e andantes de um sertão
implacável, castigados pela natureza e explorados pelos patrões.
CONCLUSÃO
Diante
do exposto no desenvolvimento deste trabalho, analisamos a crítica social e a linguagem
em Vidas Secas, de Graciliano Ramos, que tematiza o livro a partir de Fabiano e
sua família e expõe o abandono e o descaso somados à opressão social e à fuga
da seca. A enumeração de elementos presentes na obra compõe o cenário de Vidas
Secas e retrata a exploração do homem por meio da negação de seus direitos,
caracterizados como desamparo social e discursivo.
Durante a análise, pode-se constatar
a situação de miséria e exploração em que vive Fabiano e sua família,
castigados pela seca e injustiçados pelo dono da fazenda e governo, contexto
histórico que pode estender-se desde à época da publicação da obra até os dias
atuais. A falta de comunicação também se mostra como arma de opressão, pois
subtrai do homem a palavra, tão necessária para conviver socialmente, em que a
linguagem tem papel decisivo de construção do sujeito. Desse modo, o autor
expõe a exclusão social marcada pela ignorância linguística e miséria,
perpetuando a condição de oprimida da família que silencia e sofre, de maneira
que traduz o título tal como suas vidas: secas.
REFERÊNCIAS BIBLIGRÁFICAS
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